sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

SOCIOLOGIA: Domenico De Masi (Itália / 1938 - hoje)

“Possuir um interesse em comum hoje não significa que se terá também outros interesses em comum amanhã. Obtido o objetivo momentâneo, cada um passa a outros objetivos, diversos entre si. E, portanto, passa a formar outras alianças.”



“É preciso não impedir o progresso, mas geri-lo de  forma a criar uma felicidade mais difundida.”

“...quem chega primeiro ocupa as posições centrais na sociedade e com elas o poder de projetar o futuro não só para si mas também para os outros. É isto que está em jogo. O meu presente foi projetado há algum tempo por um certo Bill Gates, que já então dava por certo não só o advento da Internet, mas também o da engenharia genética e da biotecnologia, enquanto eu perdia tempo, custando a compreender as suas vantagens.”

“A lentidão é a característica da prudência. Todos os prudentes são lentos. E todos os provérbios induzem à lentidão: 'Devagar se vai ao longe', 'O ótimo é inimigo do bom', 'O afobado come cru', 'Melhor um pássaro na mão do que dois voando', 'Quem espera sempre alcança'. São apelos que tem a marca rural, que influenciam personalidades inseguras, condenadas a papeis marginais.

Não me coloco ao lado dos vencedores, pelo amor de Deus, de jeito nenhum, muito pelo contrário, tenho a propensão natural de posicionar-me ao lado das vítimas e dos perdedores. Quais os comprimidos irão tomar, como encararão a velhice, que carros dirigirão, que tipo de aposentadoria vão receber, que tipo de comida e bebida lhes servirá como alimento e a que filmes e novelas assistirão: tudo será decidido pelos outros.

O nosso é um mundo baseado na velocidade. Pode-se amar ou rejeitar tudo isso. Porém é preciso fazê-lo com consciência.”



“No curso da sociedade rural, a corrida consistia em apropriar-se dos produtos da terra, e a velocidade não era um fator muito determinante, porque a produção agrícola dependia dos tempos ditados pela natureza, das estações do ano.

A sociedade industrial é com efeito a primeira a girar em torno do conceito velocidade, dedicando-se ao máximo na corrida contra o tempo, que chamava de "eficiência": vence quem consegue produzir mais coisas em menos tempo, mesmo que se trate de coisas que não servem para nada. 'Tempo é dinheiro'. Para medir esta corrida foram construídos cronômetros cada vez mais precisos: um relógio de preço normal atrasa um milionésimo de segundo a cada cem anos.



Quando estávamos certos de ter atingido o ápice da velocidade com nossos instrumentos mecânicos, eis que surge a eletrônica com seus microprocessadores, que a cada dezoito meses dobram de potência e que já são capazes de desempenhar um bilhão de cálculos por segundo.

Nasce assim a sociedade pós-industrial que não mais gira em torno da apropriação dos produtos da terra, como a sociedade rural, nem da apropriação da mais-valia, como a sociedade industrial, mas gira em torno do poder de projetar o futuro e de impô-lo aos outros.”

“Com respeito à sociedade industrial, a pós-industrial privilegia a produção de ideias, o que por sua vez exige um corpo quieto e uma mente irrequieta. Exige aquilo que eu chamo de 'ócio criativo'. As máquinas trabalharão num ritmo cada vez mais acelerado, mas os seres humanos terão cada vez mais tempo para refletir e para ‘bolar’, idear.”



“Se nossos bisavós padeciam de tédio de dias sempre iguais, nós padecemos de vertigem por instantes sempre diversos, dilatados, acelerados e excessivos, nos quais se orientam somente aqueles que, dotados de sabedoria, sabem viver com estilo, submetendo e sincronizando os ritmos frenéticos do mundo aos próprios biorritmos.”

“Quem não possui essa sabedoria, quem não pode usufruir do luxo da pausa, se vê obrigado a perder a vida verdadeira e se contentar com os seus substitutos. A Coca-Cola é um substituto da água da fonte, o ecstasy também é um substituto do amor, a heroína é uma substituta da viagem. Quem não possui essa sabedoria é obrigado a longas fugas ilusórias, em busca de alegrias que, na realidade, encontram-se ao alcance das mãos.

Mas a felicidade consiste em buscá-la, e quem quer que a busque já está de certa forma no caminho da sabedoria. O viajante milenarista, o neoperegrino himalaiano, o tardio renitente hedonista, o adepto da geração saúde que acaba levando um tiro, o esportista extremo, o erotômato calejado, o noctívago desenfreado, o ecologista impertinente, o neo-espiritualista que se entristece com as grifes de Gucci ou Prada são, todavia, estilhaços diversos de uma busca da felicidade. São várias mônadas que o século XX manteve separadas, mas que no século XXI se coligarão em rede.”



“Num romance policial de Simenon, que chamou minha atenção porque foi escrito no ano em que nasci, em 1938, a certa altura o protagonista diz: 'Debaixo das minhas janelas os carros voam a setenta por hora'. É muito ou é pouco, setenta quilômetros por hora? Para os nossos antepassados, que na melhor das hipóteses viajavam em carruagens, setenta quilômetros por hora devia ser muitíssimo. Sabe-se lá quantos, naquela velocidade, enjoavam. Para os carros de hoje, para as Ferrari e os Masserati, setenta quilômetros é pouco. E é pouquíssimo para quem viaja num avião comercial, à velocidade do som.

Estamos desabituados de uma tal maneira a fazer as coisas com calma, que assim que dispomos de uma hora livre a enchemos de tantos compromissos ou tarefas, que o tempo acaba sempre faltando. Tempo e espaço, ou seja, as duas categorias mais importantes da nossa vida, reduziram-se de tal forma, que dispor deles, isto é ter tempo e espaço, passou a ser um luxo.



Num intervalo de somente duas gerações, graças à higiene, à farmacologia e à medicina, a nossa expectativa de vida aumentou mais do que tinha aumentado ao longo de oitocentas gerações anteriores. Contudo, a pressa nos persegue. Marcello Marchesi dizia: ‘Linda a vida de hoje, vive-se mais tempo, morre-se mais vezes!’.”

“...por maior que seja o número de experiências que se consiga acumular, existirão sempre alegrias outras, belas, que não teremos tempo de experimentar.

Daqui nasce a luta contra o tempo, para tentar roubar-lhe mais chances e ocasiões do que aquelas que o destino gostaria de nos conceder. Daqui brotam as infinitas artimanhas para economizar tempo recorrendo a telefones e aviões, para enriquecer o tempo escutando rádio enquanto andamos de carro. Para programar o tempo, recorrendo a agendas sofisticadas e a cursos de administração do tempo, ou para armazenar o tempo com secretárias eletrônicas e videogravadores.

Neste ponto é que o nosso cérebro corre o risco de entrar em parafuso. Depois de ter desencadeado a corrida contra o tempo, não consegue manter o passo e tenta se “virar em dois”: enquanto faz uma coisa, já está pensando na que vai fazer depois. ‘A vida é’ – dizia Oscar Wild – 'o que acontece enquanto estamos pensando em outra coisa.'



Eternamente mordidos pelo bicho-carpinteiro da velocidade urbana, consumimos o luxo das raras pausas, sonhando ou perseguindo a tranquilidade perdida no mundo rural. Dentro de nós, o impulso à pressa se alterna com o impulso à calma, do mesmo modo que o nosso espírito nômade cede de vez em quando ao nosso espírito sedentário. Mas o ócio é uma arte e nem todos são artistas.

“...cito de memória uma pergunta que Eliot se fazia: ‘Quanta informação perdemos devido à comunicação? Quanto conhecimento perdemos por causa da informação?’ Por trás de todas essas perdas encontra-se a ignorância de vários jornalistas e o condicionamento de muitos editores.”

Hoje “...o campo de domínio é metafísico e não físico. Quando era físico, o vencido deveria ser eliminado fisicamente. A hegemonia das ideias, ao contrário, é mais suave. E tem-se por certo que uma ideia vitoriosa não permanece vitoriosa para sempre. No embate de ideias, a vitória não é nunca definitiva. O vencido de hoje poderá amanhã ter uma ideia nova e vitoriosa. Disso nasce a diversidade das regras do jogo.”


Domenico De Masi


quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

LITERATURA: Gustave Flaubert (França / 1821 - 1880)

"Realmente, não há melhor coisa do que passar-se a noite ao pé da lareira, com um livro, enquanto o vento bate nas vidraças e a luz vai iluminando. E que não se pensa em nada, e as horas passam. E sem sair do lugar, passeia-se por países imaginários, e o pensamento, enlaçando-se com a ficção, demora-se em detalhes, segue o contorno das aventuras. A gente roça pelas personagens e até parece que se palpita sob os seus trajes. Já não lhe tem sucedido muitas vezes encontrar nalgum livro uma ideia vaga que já tivesse tido, alguma imagem meio desvanecida, que vem de longe e parece ser como a exposição inteira do nosso sentimento mais sutil? Eis porque gosto dos poetas... Com efeito, as obras que não nos abalam o coração afastam-se, segundo me parece, da verdadeira finalidade da arte."


Gustave Flaubert